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Tecnologias furtivas, por Claudia Coelho

Ando intrigada com o tempo que se perde, com o tempo que se ganha. Essa tecnologia maluca que nos dá e nos tira, nos concentra, nos distrai e retrai. Nem todo mundo está preparado para isso. Mas se existe uma cidade, que consegue nos dar tempo, quase na mesma medida que nos rouba, é São Paulo.
Toda a vez que passo um final de semana lá, sinto que é como se passasse uma semana inteira. Obviamente que falo de fins de semana em que o trânsito não é tão caótico e as pessoas parecem pertencer a um padrão de cotidiano dito normal. Entretanto, o que me encanta mesmo é a contrapartida que a cidade proporciona em poucas horas, inundando você de informações, atualizando seus aplicativos internos e fazendo downloads de sensações infinitas.
Ora, mas isso tudo é uma situação muito particular e suspeita, pois eu adoro São Paulo! Gosto do dinamismo, das novidades, da cultura, embora nem todo mundo enxergue a cidade assim como eu.
Pois bem, essa é a São Paulo que eu enxergo, o que torna, de certa forma, isso tudo muito relativo. Como costumo dizer, a vida olha para você como você olha para a vida.
E quando não olhamos para nada em específico e prestamos atenção apenas em nosso smartphone?
No final de semana passado, fui a São Paulo. Enquanto eu fazia a tradicional e costumeira “hora-bunda”, aguardando o voo no aeroporto, fixei os olhos na tela do meu celular e fiz de tudo um pouco: compartilhei fotos, li textos de aula, fucei no Facebook. Enquanto isso, a vida ia passando lá fora, ou melhor, ali mesmo. Durante o tempo que eu não arredei o olhar de meu celular, na realidade, a vida fervilhava naquele aeroporto, acima dos meus óculos.
Parei e comecei a observar o que acontecia no mundo real e percebi que ninguém me olhava. Imagina você que eu também não estava nem aí para ninguém. Todos individualizados, assim como eu, olhando suas virtualidades.
Suspeitei que a vida poderia estar olhando para mim, e eu nem aí para ela! Mas se eu não olho a vida, a telinha do aparelho de celular estaria me devolvendo algum olhar? Certamente que um olhar não, mas alguma imagem, informação ou especulação da vida alheia ou da minha própria vida. Mas onde está o olhar que deveria ser devolvido a mim? Afinal, já que perco tantos olhares enquanto olho fixamente para o celular, seria mais do que justo!
A tecnologia parece uma bolsa aberta prestes a ser furtada. Pega!!! Pega o ladrão tecnológico!
Em São Paulo, visitei uma exposição de tecnologia e artes interativas no Itaú Cultural chamada “Emoções Artificiais” que me deixou muito intrigada com uma obra sistêmica denominada “i-flux”. Consistia em uma imagem projetada na parede no formato de uma arraia, transitando de um lado ao outro acompanhada de sons estranhos. O guia da exposição nos explicou que a imagem e os sons eram alimentados com fluxos de informação de diferentes naturezas: redes internas do prédio, como a elétrica e a hidráulica, além da entrada e da saída de pessoas naquele espaço. Enfim, todos os dados formariam uma “criatura” projetada como uma constante chuva de luzes. Portanto, uma espécie de regulador do ecossistema.
Ao final da explicação, entendi que, quanto menos fluxo de energia houvesse no local, assim como a presença de pessoas se movimentando, menos a criatura se movimentaria. Além disso, quando o prédio se esvaziava, os sons emitidos pela tal criatura se intensificavam, como se clamasse por energia. Não me ocorreu outro pensamento, senão o de que aquele bichinho era instigante, mas também muito carente!
O conceito daquela obra me fez pensar nas lógicas invertidas. Tantas pessoas se ausentando da realidade, enquanto a criatura tecnológica clama por energias reais e presenças humanas.
Um tanto paradoxal acharmos que ganhamos tempo com a virtualidade, enquanto perdemos tanto com ela também. Abrimos janelas e links virtuais, mas também fechamos tantas janelas de almas e compartilhamentos reais. Será que essa “criatura” está se humanizando, enquanto optamos por não presenciar a vida? Estamos sendo furtados diariamente, à luz do dia, do que existe de melhor: viver literalmente a vida como ela é, real e verdadeira. Sem dúvida, o que mais me causa arrepio é que isso está acontecendo com o nosso consentimento.
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Cláudia Coelho nasceu em Porto Alegre, é formada em Psicologia desde 1993 pela PUCRS. É Psicóloga Clínica e Consultora em Gestão de Pessoas. Especialista em Psicologia do Trânsito e Projetos Sociais e Culturais. Atua em avaliações psicológicas comocredenciada do DETRAN/RS e Polícia Federal. Sem dúvida, a característica polivalente da autora propiciaram-lhe vivências enriquecedoras e multifacetadas. Em 2008 começou a escrever suas primeiras crônicas em seu blog (http://psiclaudiacoelho.blogspot.com.br/). É aluna de Desenho e Pintura do Atelier Livre da Prefeitura de Porto alegre, onde desenvolve trabalhos que dialogam com suas crônicas. As crônicas aqui publicadas estão em Lógicas Invertidas – crônicas / Cláudia Coelho. ( Evangraf, 2012)
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