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A crônica de Guto Piccinini: sem título (1)

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Sem título (1), por Guto Piccinini

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Faz um tempo que vislumbro por aí um certo apreço por velharias. Circulam óculos, camisetas, máquinas fotográficas entre outros produtos envoltos por uma aura retrô. Parece que tudo ganha um charme neste clima de “velha infância”. Aproveitando o fluxo, embarquei também nesta busca por dispositivos obsoletos, destes que não encontramos mais em lojas (ou que encontramos por um preço de colecionador). Solitário no fundo de algum armário esperei encontrar um aparelho de slides que há muito via e revia minhas fotos de infância. Sabe-se lá que nova utilidade pode-se desenvolver com um brinquedo “novo”. Já do fundo do baú surgiram resquícios coloridos de uma máquina de fotografia, que havia tirado férias permanentes lá pelos meus 10 anos de idade (provavelmente pela falta de paciência cênica dos meus pais em sacar algumas poses, e menos por questões técnicas). Em outros tempos já havia surrupiado a velha máquina de escrever, com seus muitos barulhinhos re-romanceados. Escrever nunca será “apenas escrever” em uma máquina de escrever. Vocês sabem. É como se elas carregassem em suas teclas uma microcâmera imaginária a conduzir a música: o pseudo escritor, iluminado pela sonoridade metálica a preencher os dedos e as intensidades da escrita. Acompanha um cigarro e um copo de qualquer bebida inspiradora. Violentamos o papel, acuado, diante da genuína criatividade e sabedoria de um pseudo-junkie incompreendido. Até hoje recebo reclamações de meu laptop pela voracidade com que termino um parágrafo (satisfações secundárias!). Pela cena, pela cena.

No campo das máquinas fotográficos tenho diversos amigos que foram atrás das famosas “lomos” (ou menos conhecidas por “Leningradskoye Optiko Mechanichesckoye Obyedinenie”). São máquinas produzidas na antiga União Soviética que por um “defeito” tecnológico não mantinha um padrão em suas fotografias. A esta falta de qualidade agrega-se um valor após alguns anos. Como os muitos artistas que somente fizeram fama após sua morte, as lomos são máquinas incompreendidas. Não, é claro que não entenderemos a moda: cria-se uma estética fotográfica inusitada e singular, a tal ponto dos novos dispositivos tecnológicos, principalmente os celulares com câmera, buscarem alternativas que retomam estes “recursos” atingidos. Há quem afirme neste movimento uma hipocrisia, o que ainda resisto a uma posição mais categórica. Reconheçamos, no entanto, a semelhança desta aproximação com o fato de já encontrarmos à venda calças rasgadas de fábrica, o que nos economiza o tempo de uso, essencial para a estética e o consumo de um modo de vida. De que tempo falamos?

A permanência tem suas questões: consumimos existência, não um mero objeto. E como existem novos objetos, aos milhares, todos os dias, vamos construindo sentidos e direções as mais estapafúrdias em tudo que sobra deste caos coisificado. Ando na experimentação deste movimento de “permanência”, o que não deixa de ser, também, um consumo. Não é um problema que seja. Buscar sair disto é uma falsa questão. Mas há de se olhar, no entanto, para este processo no qual o “tempo” agrega ao objeto um determinado valor, uma vez que por vezes atalhamos um tempo de vida, de ranhuras de vida, em busca de algo que a isso não substitui.

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Guto Piccinini, psicólogo, mestre em psicologia social e frequentador da Palavraria. Atualmente experimentando palavras.

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