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Recordar, ler e recordar de novo, por Gabriela Silva
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“Texto de prazer: aquele que comenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise em relação com a linguagem.” Roland Barthes. O prazer do texto.
Ler é antes de tudo, romper com o propósito de um universo único. Lemos porque precisamos. É a sede de conhecer o que nos é diferente, estranho ou ainda exótico. Procuramos na literatura as viagens que determinadas por espaço e tempo não podemos realizar. E então, encontrando o caminho dessas viagens, passamos a procurar respostas, para um acontecimento cotidiano, para decepções, para alegrias…E quando encontramos, junto está a sensação de que algum ente no mundo esteve na mesma situação. É ai que nos identificamos com alguma personagem que nos dá a impressão de que é real, de que viveu semelhantes experiências. Não que a literatura seja perfeita, não que ela deva desconstruir nossa visão da vida. Não. É mais do que apenas isso. Imagine fragmentar-se por centenas de livros, em cada um deles colocar uma memória, como um álbum de fotos. Como se classificariam? Que livros são a minha, a sua memória?
Há determinados livros que são a chave de nossa memória toda. Assim como existem filmes, músicas e pessoas que concentram boa parte das imagens que guardamos em nossa mente (ou no coração). Uma vez li, em determinado livro de teoria literária, que “recordar” não vem de lembrar, mas se origina da palavra cordis, coração em latim. Então, recordar é passar novamente pelo coração, esse arquivo de memórias e sentimentos.
Sempre que me lembro das minhas leituras de criança, um livro em especial aparece na memória: O burrinho que queria ser gente, de Herberto Salles. Era uma edição mesmo muito feia, que minha mãe me havia dado numa feira do livro. O que me fazia ler ele umas muitas e tantas vezes era o final: nunca me conformei. A história é assim: um burrinho queria ser gente, um dia ele encontra uma bruxa que o transforma em… gente. Dai é aquilo, sempre tem um porém, uma mas, um não sei o quê… e essa, como uma boa história, também tinha: o burrinho era muito querido e portanto chamado assim: burrinho querido. A bruxa lhe ajudou, mas também deixou dito que o batizaria de Ohnirrub Dorique, e que se um dia alguém lhe dissesse o nome ao contrário, ele voltaria a ser burro. Ele vai viver sua vida (nas ilustrações ele era bem bonito), se apaixona por uma moça linda e um belo dia… ele faz uma coisa errada e a namorada lhe diz: ah meu burrinho querido! E puff! Ohnirrub Dorique se transforma em burro e volta pra casa numa nuvem para o campo, triste e solitário. A moral? Preste atenção no que você faz, ou pode por tudo a perder.
Esses dias encontrei o livro na minha estante. Ele estava meio deixado de lado, talvez até mesmo esquecido. Li e recordei. E ele fruiu em mim, como nunca antes, me deixou desconfortável mesmo, a pensar nas ações e reações que o cotidiano demanda de mim. E me aconchegou, pois mais uma vez lembrei que, desde a infância, eles, os livros, me acompanham. E consigo trazem as personagens que habitam comigo o mundo. Ainda que não lhe possa mostrar, amigo, Ohnirrub Dorique está agora aqui a soprar no meu ouvido: let it be… let it be… porque um dia, menina, alguém pode te dizer que está na hora de voltar pra casa.
Gabriela Silva tem literatura no seu dna. Desde a infância convive com homens e deuses e as histórias que lhe contam. É formada em Letras, estuda o mal e a morte na literatura e todas as teorias conspiratórias e literárias. É doutoranda em Teoria da Literatura na PUCRS, tendo como foco a construção da personagem. Entre outras atividades, coordena atualmente o grupo que organiza e apresenta mensalmente o Sarau das 6, programa de leituras e comentários literários, na Palavraria.
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