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Brincar seria uma coisa séria?, por Jaime Medeiros Júnior
E tudo parece ter começado mais ou menos assim:
– Ele [numa quase interjeição de contentamento]: é brincadeira o que fizeste!
– Ela: não, não, não é brincadeira, é coisa séria!
– Ele: pois então, brincadeira é uma coisa séria!
As palavras lhe pareciam ter saltado da boca. Logo percebia ter-se deixado levar pela força da retórica. O pitoresco ali, no entanto, era o gostinho de verdade que parecia se combinar àquelas palavras. Algo no que dissera dizia e dizia bem, dizia coisa com coisa. E tudo parecia estar contido naquele susto, naquele despreparo, com que vieram a ter ali.
Agora se queria sério. E numa tentativa de explicar-se, diz: já notaste o nível de atenção e envolvimento com que as crianças brincam? – Isto, contudo, não parecia suficiente para convencê-la da arguição. E nem mesmo ele parecia tão convencido do que dissera, tão rápido tudo acontecera para que se pudesse ter qualquer certeza que fosse. Certezas são todas feitas de tempo, o tempo certo do certo cair do pé.
Outros chegam, sentam a mesa. O que os obriga a mudarem o rumo da prosa. A noite finda.
[mais tarde em casa]. O engasgo, aquela promessa de verdade, nele inda não se resolvera, não falhara, mas também não se confirmara. Foi remexer seus guardados. Topou com uma citação do Houaiss onde se explicava: o étimo Brinc- advém de vinc- “que segundo Antenor Nascentes deriva-se de brinco, do latim vincùlum,i [liame, laço, atadura]”. Aqui começava a se confirmar aquilo que ele intuíra [lembrara?]. Brincar parece ter relação com a nossa necessidade de nos sentirmos pertencentes a algo maior, este maior começa já ali no outro ao nosso lado. É um convite a festa, a pôr-se em volta de um aparente nada central, a andar em roda, e estabelecer um espaço de estreitamento das relações, de comunhão. Também parece uma forma de nos organizarmos no universo. Aqui, no mais das vezes, o tempo é cíclico, e o espaço circular. Aqui ninguém perde, ninguém ganha, todos tem o seu lugar na roda. É lembrar os escravos de Jó, as rodas das cantigas de roda, o telefone sem fio.
Então dá-se conta num repente, o universo pacífico da brincadeira está diametralmente oposto ao do jogo, que é o da disputa, o da guerra, o da busca da perfeição no desempenho. O brincar normalmente nos põe em círculo [e mesmo quando o circulo não se destaca numa figura, num desenho, há de se encontrar um círculo na estrutura cíclica da brincadeira, lembremos a amarelinha ou das cinco marias (a que Pessoa chama cinco pedrinhas – clique no link para o poema do menino jesus, talvez uma das brincadeiras mais sérias que já se viu)]; a disputa, o jogo obriga a nos pormos em campos antagônicos, a termos um antagonista, um enfrentamento, portanto precisamos de uma figura como o quadrado ou retângulo que em sua formação tem a dualidade por base. Aqui o tempo costuma nos contar uma história. Não quer se repetir. Estas estruturas simples, circular e quadrangular, constroem visões de mundo também antagônicas. A da guerra e a da paz. O mais interessante é que ambas parecem lidar com a questão da morte e da impermanência, mas enquanto uma parece querer compreender a morte, reservando-lhe um lugar na economia do universo, a outra parece querer negá-la, lutando contra o mal. O outro, nesse caso a morte, torna-se o nosso inimigo.
Talvez, pensa ele, tudo isto possa nos fazer entender porque os alquimistas herdaram dos geômetras o problema da quadratura do círculo e, quem sabe, também lembrar a ela porque brincar é uma coisa das mais sérias que há.
Jaime Medeiros Jr. é poeta portoalegrense (1964), pediatra. Autor do livro de poemas Na ante-sala. Mantém os blogs Tênues Considerações e O Arco da Lira.
A prosa ligeira de Jaime Medeiros Jr. aparece neste blog quinzenalmente às quartas-feiras.
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