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Trilogia da violência III, por Guto Piccinini
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O terror não tem palavra. Ele se esgueira por detrás, de sobreaviso. Desliza sorrateiro e se instala em nós, de modo incompreensível. O terror não tem palavra, e não há dia em que eu não busque palavra que dê conta desta hiância. Tento. Espero. Estas noites eu reviro meu corpo em dois. Não é possível revirar-me na cama. Até as ridículas banalidades não são permitidas. Afinal, são de banalidades que nossa vida faz sentido. E são exatamente estes dois detalhes que não passam despercebidos: vida e sentido. Estas noites carregam no tempo sua intensidade. Um estado de tensão constante. Um dia te direi desta angústia que precede o ato. Hoje não te digo, por motivos óbvios. Mas não perco a esperança.
De duas em duas horas nos acordam ligando as luzes e/ou emitindo algum som alto. Batidas em nossas portas. As vezes os gritos já são o suficiente. Enquanto digo, vieram me buscar em meio a este sono descontínuo. Nos pegam no corpo como objetos desprezíveis. Um saco de corpo, é o que quase consigo sentir, enquanto esboço, mecanicamente, nuances de reação. Sou posto em uma cadeira. A mesma de sempre. Cheira a suor e sangue. Deixam assim para intimidar logo de cara quem é trazida para cá. Fico por horas sendo observado por um grupo. Parecem esperar algo, ou talvez queiram me fazer esperar. O segundo que precede o ato é povoado.
Ele entra contundente. O terror não tem palavra: ele entra e desfere em meu rosto desfigurado pelo tempo um tapa tão forte que consigo ouvi-lo de fora de meu corpo. Dói, e sinto escorrer um lágrima de meu olho. O grupo que me envolve na sala quebra seu silêncio anterior e ri. São homens como eu, digo, mas não sei ao certo que humanidade referencio. A sequência segue o script. As perguntas são as mesmas, não fossem as palavras diferentes. As respostas são as mesmas, não fosse a tentativa que delas se fizesse um outro contexto. Hoje morri mais um dia. Como morri no dia em que me colocaram dentro de uma viatura. Como no dia em que ameaçaram minha família. Morri como no dia em que fui examinado para saber se meu corpo aguentaria por mais um tempo. Morri e agora sou outro. Digo.
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Guto Piccinini, psicólogo, mestre em psicologia social e frequentador da Palavraria. Atualmente experimentando palavras.
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